Não é muito comum presenciarmos eventos que entrarão para os livros de história. Mais raro ainda é termos a oportunidade de acompanhar o desdobramento da história ao longo dos anos, testemunhando-a conforme é escrita. Uma dessas raras chances vem acontecendo com o autismo. Identificado formalmente há poucos anos em termos históricos, foi só na década de 1940 que os primeiros casos foram descritos numa publicação científica por Leo Kanner, psiquiatra austro-húngaro radicado nos Estados Unidos, reconhecido como o primeiro psiquiatra da infância e adolescência. E desde então esse diagnóstico passou por transformações sociais inimagináveis, diante dos nossos olhos.
Essa história foi registrada como nunca antes no livro Outra sintonia : a história do autismo, dos jornalista John Donavan e Caren Zucker, lançado esse mês pela Companhia das Letras. Especializados no tema, com experiência na tradução das informações para os leitores, eles fazem nesse livro uma verdadeira reportagem sobre o autismo – reportando ao leitor tudo o que descobriram, de forma compreensível e muito abrangente. Não há um fato conhecido sobre esse diagnóstico que não seja investigado e destrinchado nas suas quase setecentas páginas.
O livro começa com a história do primeiro paciente avaliado por Leo Kanner, o menino Donald Triplett, narrando a batalha dos pais para cuidar dele num tempo em que famílias escondiam a existência de pessoas com doenças mentais, internando-as por vergonha em instituições asilares. A partir desse ponto é interessante acompanhar os temas que dominaram o debate sobre o autismo na divisão cronológica feita pelos autores: temos o período da descoberta, a busca pelas causas, tentativas de tratamento, a estupidez de se culpar a vacina, até o momento atual, em que após ficar famoso, o autismo busca seu lugar na sociedade. No prazo de poucas décadas a condição deixou de ser uma curiosidade médica, foi considerada uma ameça, mobilizou celebridades e anônimos e hoje vem se inserindo na agenda da diversidade.
Tudo isso debaixo de nossos olhos. Tanto que o caso 1, Donald Triplett, acompanhou em vida toda essa jornada, da descrição do transtorno até sua formatação atual. Nós o reencontramos no final do livro, já idoso, símbolo de uma vida vivida dignamente. Claro que sua grande sorte foi nascer numa família importante, de uma cidade pequena, num país rico, coisa que o ajudou até o fim da vida. Mas sua história privilegiada fala menos sobre como sua vida foi atípica e mais sobre como poderia a ser a vida de todos as pessoas com esse diagnóstico.
Via Estadão