Duas crianças autistas que tinham leucemia e passaram por um transplante de medula óssea para tratamento do câncer reduziram consideravelmente os sintomas do autismo entre um ano e 20 meses após o transplante, inclusive mudando a pontuação na escala oficial de diagnóstico do transtorno. Embora os casos ainda sejam considerados pontuais, eles seguem uma linha de pesquisas que apontam que o autismo pode ter um caráter autoimune e, portanto, poderia ser tratado por meio do transplante celular.
O autismo é uma das condições clínicas que mais desafiam médicos e profissionais da saúde de todo o mundo. Os dados mais recentes apontam que a doença afeta um a cada 68 nascimentos, sendo mais prevalente em meninos do que em meninas. Até hoje, ninguém sabe dizer exatamente por que e como o transtorno acontece – a única coisa que se sabe é que se trata de uma desordem multifatorial, que normalmente tem uma herança genética. Não existe nenhum exame que aponte com certeza que o paciente tem autismo, por isso, o diagnóstico é sempre clínico, com base nas alterações comportamentais.
Os pacientes que apresentaram melhora foram transplantados no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, pela equipe do onco-hematologista Vanderson Rocha, que prepara um artigo científico sobre o achado. Rocha também é diretor-científico da Rede Europeia de Banco de Sangue de Cordão (Eurocord) e, diante desses resultados, está preparando um levantamento em toda a Europa para saber se há outros casos de crianças autistas transplantadas e quais foram os resultados.
Foram dois pacientes transplantados em 2015: Lucas Alexandre Freitas Pinheiro, que hoje tem 7 anos, e Sofia Toniato Venturini, que tem 11. Nos dois casos, as crianças tinham indicação para o transplante por causa da leucemia e receberam a medula de um doador não aparentado. Antes do procedimento, Sofia somava 39 pontos na escala de autismo (indicando sintomas severos) e depois caiu para 30 (sintomas moderados). Já Lucas somava 30 pontos antes do transplante (sintomas moderados) e caiu para 24 depois (sintomas mínimos).
O próprio médico reconhece que ainda precisam ser feitos outros estudos para comprovação de resultados, mas afirma que todos os esforços para reduzir os sintomas do autismo são válidos. “É claro que não vou sair fazendo transplante de medula em todos os autistas. Mas esse resultado abre um leque de hipóteses que precisam ser mais bem investigadas, entre elas a de que o autismo pode ter um caráter imunológico e teria algum benefício com o transplante de medula óssea”, disse Rocha.
Melhora
A dentista Danusa Toniato, de 49 anos, mãe de Sofia, comemora a melhora da filha, que foi diagnosticada com autismo aos 4 anos e com leucemia aos 6 anos. Segundo Danusa, desde o diagnóstico de autismo, a menina fez vários tratamentos, incluindo psicoterapia e equoterapia, mas ainda não foi alfabetizada, pois não consegue se concentrar nas aulas e não se interessa pelo conteúdo. Após o transplante, Danusa diz que o comportamento da filha mudou completamente.
“Percebi uma melhora quase que imediata. Assim que recebemos alta, Sofia passou a interagir mais com os adultos, ficou menos arredia, começou a abraçar as pessoas, está indo para a escola. Todo mundo percebeu. O transplante trouxe um benefício que eu jamais imaginava”, afirmou Danusa, que faz uma ressalva: “Apesar disso, a neurologista que a acompanha diz que os avanços são pelo próprio amadurecimento da Sofia.”
A família de Lucas, que foi diagnosticado com autismo aos 4 anos e meio, também tem as mesmas impressões. Segundo o servidor público Ricardo Alexandre Pinheiro de Oliveira, de 42 anos e pai do menino, as melhoras dos sintomas de Lucas após o transplante foram atestadas pela psicóloga que o acompanha também desde o diagnóstico.
De acordo com Ricardo, antes do transplante, Lucas tinha muita dificuldade de estabelecer relações sociais, tinha reações extremadas, crises de nervosismo e não tolerava contato com estranhos nem com crianças, com brincadeiras ou jogos infantis. “Após o transplante, ele ficou mais carinhoso, menos agressivo, passou a se relacionar com outras crianças, consegue até abraçar colegas da escola e cumprimentar desconhecidos”, afirmou o pai.
Ricardo também ressalta, no entanto, que nem ele nem a psicóloga que acompanha Lucas podem afirmar que a melhora seja exclusivamente por causa do transplante. “Sou pai de uma criança autista e não quero criar falsas expectativas para outros pais. Só sei que Lucas apresentou mudanças, pequenas coisas que se tornam grandes para quem vive o problema”, afirmou.
Cautela
A neuropediatra Rejane Macedo Campos, que trabalha com crianças autistas no Hospital Albert Einstein, diz que a teoria de que o autismo possa ser uma desorganização do sistema autoimune – e por isso seria tratado com terapia celular – é uma linha de pesquisa que tem sido discutida no mundo, mas ainda há poucos resultados a respeito, todos de achados isolados e experimentais.
A literatura mundial tem poucos relatos sobre casos de transplante em pacientes autistas. Um estudo recente realizado na Universidade de Duke (EUA) avaliou a segurança do transplante de sangue de cordão umbilical em 25 pacientes autistas que tinham sangue do cordão umbilical congelado.
Os pacientes foram avaliados antes do procedimento, seis meses e 12 meses depois. E a conclusão é que o transplante das células do cordão umbilical foi bem tolerado e que houve melhoras significativas nos aspectos comportamentais das crianças, também com redução na escala de classificação clínica do autismo. O próximo passo da pesquisa será fazer um estudo controlado.
“Esse é um assunto que tem aparecido aos poucos. A tese é de que haveria um processo celular inflamatório, que levaria à manifestação da doença. Como o autismo não tem uma causa específica, essa teoria tem ganhado força e muitos pesquisadores estão em busca de uma resposta”, afirmou Rejane.
De acordo com ela, o resultado encontrado após transplante é importante, mas requer mais estudos. “Tudo que se pesquisa é válido, mas falar de transplante para autismo ainda é muito precoce. Como foram apenas dois pacientes, o resultado não pode ser generalizado”, avalia.
Marisa Furia Silva, vice-presidente da Associação Brasileira de Autismo (ABRA), regional Sudeste, também reforça a necessidade de mais estudos para que esses resultados possam ser comemorados. “Como o autismo não tem cura, muitos pais saem fazendo qualquer coisa na expectativa de curar seus filhos. E não pode ser assim. A medicina está evoluindo muito, mas ainda não encontrou a causa do autismo nem um medicamento que cure. Nossa orientação é que, antes de fazer qualquer procedimento invasivo no seu filho, espere as comprovações científicas”, afirmou.
Via Veja