Imagine que você queira falar algo, saiba o que pretende dizer mas, por um “curto-circuito”, a boca não obedece o comando de fala do cérebro, e os sons não saem.
É assim que se sente a criança com Apraxia de Fala na Infância (AFI), um distúrbio neuromotor que afeta a habilidade de produzir e sequenciar os sons da fala.
O problema é pouco conhecido no Brasil, inclusive entre os profissionais de saúde. São comuns relatos de diagnósticos errados, o que atrasa o início de terapias.
Segundo Fabiana Collavini, presidente da Abrapraxia (Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância), há casos de crianças que foram diagnosticadas como autistas, quando, na realidade, apresentavam apraxia.
Ilustração Carolina Daffara/Editoria de Arte/Folhapress | ||
“Como têm dificuldade em se comunicar, se irritam, ficam nervosas”, diz ela, mãe de Ana Beatriz, 5.
A suspeita de que havia algo errado veio quando Ana tinha um ano e demonstrava dificuldade em balbuciar. Mesmo com as sessões de fonoaudiologia, não se expressava por meio dos sons.
“Era muito estressante, a gente pulava de médico em médico”, relata a mãe. Ana passou por pediatras, neurologistas e outros profissionais de saúde até que o distúrbio fosse diagnosticado.
“Ainda temos pediatras e outros profissionais pedindo para os pais para ‘aguardar’ que a fala virá”, afirma a fonoaudióloga Elisabete Giusti, especialista em desenvolvimento da linguagem.
Clóvis Francisco Constantino, vice-presidente da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), reconhece que o diagnóstico da apraxia na infância é pouco discutido no meio pediátrico. Diz que pautará o tema na SBP para que os departamentos científicos busquem evidências atuais e elaborem documento.
Elisabete Giusti afirma que os casos de apraxia “pura”, sem outras patologias envolvidas, são raros, afetam menos de 1% das crianças. São mais comuns problemas de fala por falta de estímulo.
“Há muitos casos de crianças sendo pouco estimuladas pelos pais, vendo muita TV e outros eletrônicos. O problema é o profissional generalizar, achar que é só isso.”
Segundo ela, aos três anos de idade é possível ter a certeza do distúrbio. Antes dessa idade, as crianças não possuem um repertório de comunicação verbal suficiente que dê segurança ao diagnóstico.
Mas certos sinais podem ser percebido antes. O diagnóstico deve ser feito por um fonoaudiólogo especializado.
Há outros desafios: o acesso a terapeutas capacitados e a não cobertura pelos planos de saúde do número de sessões de fono necessárias.
A AFI ainda não tem código na CID (Classificação Internacional de Doenças). Ali consta só apraxia da fala adquirida, que tem outra origem, por exemplo, quando a pessoa sofre um trauma ou derrame e deixa de falar.
Para efeito de reembolso, os fonos recorrem a outros transtornos de fala que constam na CID. Mas o número de sessões autorizadas é menor.
Nos EUA, há um movimento para incluir a AFI nas próximas revisões da CID, o que deve facilitar a disseminação de informações sobre o tema.
“A apraxia na infância requer muito treino, de três a cinco sessões por semana. Na terapia tradicional, uma vez por semana pode ser suficiente”, explica Elisabete.
Ana Beatriz, por exemplo, faz de três a quatro sessões de fono por semana. Há dois anos, só falava “mamã”. Hoje seu repertório reúne ao menos 60 palavras.
DOWN
Crianças com síndrome de Down têm um risco maior de apresentar apraxia da fala. A incidência nesse grupo chega a 60%.
É o caso do menino Vito, 7, que tem síndrome de Down e, como uma segunda deficiência, a apraxia.
A família suspeitou do distúrbio quando, aos três anos, Vito não atingiu o desenvolvimento verbal esperado.
À época, a família morava em Washington (EUA) e Vito recebia estimulação precoce por conta da síndrome de Down.
“Ele havia atingido todos os marcos esperados para uma criança com Down, menos na questão da fala”, lembra o pai Diego Bonomo, gerente executivo de comércio exterior da CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Já no Brasil, Bonomo afirma que foram consultados vários profissionais e nenhum conseguiu fechar o diagnóstico. Pesquisando sobre o assunto na internet, a família descobriu uma clínica em Phoenix, no Arizona (EUA), especializada no distúrbio e lá confirmou a suspeita.
Mais do que isso. Bonomo e a mulher, Christiane Aquino, decidiram montar um projeto e trazer para o Brasil a fonoaudióloga americana Lynn Carahaly, criadora de um dos três métodos de reabilitação da fala existentes hoje nos EUA (Speech-EZ).
Em dois anos, 140 profissionais já foram capacitadas no país para tratar crianças com apraxia.
Entre os exercícios, há uma série em que a criança é estimulada a usar as mãos e a boca para simular sons. A ideia, diz Bonomo, é que a conexão cérebro-mão ajude a “corrigir” a conexão cérebro-boca”.
“É um tratamento intensivo. Além das sessões de fono, precisa do envolvimento da família, os exercícios têm que ser incorporados na rotina da criança. Se ela quer beber água, é preciso insistir para que produza aquele som, com a ajuda da mão”, afirma Bonomo.
Não é uma tarefa fácil, especialmente para as crianças crescidas. “Elas ficam frustradas porque ninguém as compreende.”
Vito, por exemplo, tem apraxia severa e, mesmo com três sessões de fono por semana, e exercícios em casa, ainda fala pouco.
A família usa formas de comunicação alternativa, como figuras. “Pergunto, por exemplo, o que ele quer de café da manhã e ele aponta o ovo. Mas ainda assim estimulo que ele produza fala”, conta.
Via Folha de São Paulo